terça-feira, 23 de março de 2021

A ESTRELA

O fim é uma possibilidade constante. Uma eventualidade inevitável. Nenhuma glória pode ser desfrutada sem que a sombra dos finais paire sobre ela.

A ESTRELA


Em um lugar distante, isolado no tempo e no espaço, vivia um garoto solitário. Caminhava nu por terras áridas e acinzentadas, sem nunca questionar para onde estava indo ou quando deveria chegar. Seus pensamentos eram um amontoado confuso de considerações descritivas. Analisava a maciez das areias finas do deserto afundando sob seus pés. Refletia longamente sobre a rigidez de solos inférteis e sobre o desenho pontilhado das pegadas que deixava para trás. Observava com assombro a desolação da paisagem e o céu escuro, salpicado de constelações prateadas.

O garoto nunca sofreu de solidão, pois este conceito lhe era desconhecido. Como poderia sentir ausência de qualquer coisa quando ele próprio sempre existira numa realidade solitária? Debruçava-se então sobre as coisas que lhe eram conhecidas: a imensidão de seu planeta particular ou o infinito que se expandia no céu. E caminhava porque caminhar era a única coisa que podia fazer. Andava sem rumo num ambiente onde as horas não tinham relevância, onde os dias e noites se fundiam numa existência perpétua.

Certa vez, enquanto rumava em sua peregrinação constante, o garoto avistou uma estrela se fragmentando violentamente num brilho de luz, lançando detritos fumegantes em todas as direções. Experimentou um êxtase indizível trazido pela novidade daquela explosão. Não se lembrava de ter catalogado nada tão sublime quanto aquilo, e seus olhos se encheram de novidade. Ainda maravilhado pelo espetáculo de luzes, viu um daqueles fragmentos incandescentes cortar o horizonte para cair além das montanhas rochosas que se desenhavam na paisagem distante.

Pela primeira vez em toda a duração de uma eternidade, sentiu um tipo de formigamento estranho lhe subir pela espinha até se alojar no coração. A urgência repentina o levou a caminhar depressa, e logo estava correndo, considerando mentalmente que agora a velocidade se materializava sob a forma de uma brisa forte que lhe varria a pele. Correu pela primeira vez, tendo agora um propósito: precisava cruzar aquela cordilheira para encontrar o pedaço de estrela que se chocou contra a terra deserta estendida por trás da cadeia de montanhas. O brilho prateado daquele fragmento crepitava no horizonte, induzindo o garoto ao fascínio.

Era estranho perceber o tempo como uma entidade que talvez sempre estivera ali, oculto na apatia de uma existência sem maiores significados. As montanhas estavam distantes demais, e sua jornada se estenderia por tempo demais. Cada passo largo estava carregado de ansiedade e expectativa. O ar seco era pesado. Queimava os pulmões agitados. Correu num ritmo constante, sem nunca olhar sobre os ombros para ver as pegadas erráticas impressas no deserto. Subiu colinas íngremes e saltou por cima de rochas mortas, obcecado pelo clarão tremeluzente no horizonte.

Quando atingiu o pico da montanha, o garoto viu a fonte daquela luz deitada ao longe, num berço ressequido de pedras cinzas. Desceu as pressas, sem tirar os olhos da estrela quebrada. Mais uma eternidade se estendeu antes de finalmente se aproximar do brilho de prata. Parou e tomou em suas mãos o fragmento, sentindo um calor intenso irradiar por seu corpo. Seus olhos incrédulos estavam iluminados. Ele nem ao menos percebeu que suas lágrimas refratavam a luz para formar cristais líquidos que lhe desciam pelas faces.

Voltou a perambular sem rumo certo, porém nunca mais seria o mesmo. Carregava nos braços um pedaço das constelações que tanto o maravilhavam, e podia jurar que aquele detrito perdido se sentia acolhido nas palmas de suas mãos. A estranheza do propósito era assustadora e fantástica. Muitas eras se passariam naquela peregrinação apaixonada, e agora o garoto quase não buscava nos céus a visão das estrelas que lhe eram inalcançáveis. Caminhou com o coração preenchido, sem espaço para o mundo vazio que o circundava.

Logo, um outro sentimento faria morada na alma do menino. Era preocupação. Percebeu com apreensão que o detrito luminoso irradiava seu brilho com menos intensidade. O calor que o dominava foi se tornando morno a medida em que o tempo ia afirmando sua presença inevitável. A estrela estava se apagando, e não havia nada que o garoto pudesse fazer para evitar aquele processo. Ele tentou absorver o máximo de luz que era possível absorver, mas o medo era uma constante entre ele e o detrito.

Quando a estrela de prata finalmente se apagou, um vazio abissal foi aberto no coração do jovem eterno. Ele parou, e dias incontáveis se derramaram no espaço ao seu redor. Se antes o planeta deserto lhe era apático, agora tinha ares de condenação. Parecia insustentável viver no cinza violento daquele lugar. Seus pensamentos não registravam mais aquela realidade mortiça: voltavam-se com pesar para a ausência de sua companheira celeste.

Eventualmente, ele voltaria a caminhar. Suas mãos abertas, porém, seriam um lembrete constante de sua condição solitária.


Canção Inspiradora: I Never Learn, Likke Li (Álbum: I Never Learn)

sábado, 29 de setembro de 2018

VERMELHO PROFUNDO

O homem idealiza tudo. Quando é convicto, sabe para onde quer ir e fala sobre o que quer dizer. Pouco surpreende então que por vezes se encontre no meio de um bloqueio criativo: a vida é inconstante, e também o é a produção humana. Ora, quem vive nos recantos distantes da escuridão pouco poderá dizer sobre a luz, por mais que o queira. Sua imaginação, embora infinita, é limitada pela falta de sinceridade que ecoa em suas palavras. Melhor seria reconhecer o que sente em verdade. Extrair, ainda que da amargura, a beleza melancólica de sua arte. Que fale, portanto, sobre o aspecto sombrio de sua morada. Que fale da esperança de sair ao sol, ao invés de pregar tardes ensolaradas imaginadas por sua mente cansada. Que aprecie também os invernos e as noites enquanto o amanhecer não desponta no horizonte.
VERMELHO PROFUNDO

Célia se viu no espelho de um quarto de motel. O homem desnudo que se debruçava sobre ela deveria ter sido o primeiro dos choques que se desencadearam naquele momento, mas por algum motivo foi a luz avermelhada do ambiente que lhe surpreendeu. Apesar da sensação de escuridão se fazer presente, o carmim vivo que emanava daquela lâmpada parecia cobrir o recinto com uma aura terrivelmente luxuriante. A realidade desprendia-se da matéria rubra para gerar uma atmosfera de desejo e perigo – e o perigo a excitava.
Não protestou ante ao peso febril do sujeito. Estava surpresa demais para prender-se a qualquer linha de raciocínio, então se entregava a percepção astuta de cada quadro que seus olhos enxergavam. Não sabia se seria capaz de chegar ao entendimento do que todos esses quadros representavam em conjunto, mas devorava com anseio tudo que ali se passava. Sentia com intensidade o toque da pele, as mãos urgentes que a exploravam incansavelmente. Retribuiu o contato porque acreditava que aquele homem assim o esperava. Não sabia quem era ele. Não sabia se o temia ou o amava.
Sua memória não fazia fluir os registros mentais passados: havia apenas a agonia do presente desenhando-se com estranheza no olhar de um completo desconhecido. Quem era ele afinal de contas? E enquanto tentava responder a essa pergunta, percebeu que tampouco sabia como havia chegado até ali, ou o que havia acontecido para que despertasse repentinamente de uma espécie de transe e visse suas intimidades estendidas sobre o leito. Pior ainda, percebeu que não sabia onde estivera antes, ou se quer de onde viera a princípio. Sua mente era uma tela em branco, ávida para entender o que estava se passando na vermelhidão do quarto.
O primeiro impulso levou Célia a acreditar que pudesse ter sido dopada e sequestrada por algum maníaco. Experimentou um horror intenso quando deliberou sobre essa possibilidade. Se assim fosse, como faria para se livrar do fardo inescrupuloso que a prendia sobre os lençóis? O que poderia fazer para escapar da brutalidade que talvez viesse depois? Vinte e cinco anos, violentada e encontrada morta em um quarto de motel na beira de uma rodovia qualquer. Quão terrível seria para sua família (Eu tenho família?) receber a notícia, ter de reconhecê-la inerte no refrigerador do IML e então desgastar-se com ritos fúnebres que pareceriam infinitos?
Buscou no olhar do suposto opressor qualquer confirmação dessa hipótese, mas deparou-se apenas com a incerteza de um rosto estranho – mil possibilidades poderiam se esconder por traz daquelas órbitas inexploradas. A pressão de seus dedos ou a força média com que a penetrava pouco diziam: Célia entendia que o amor, a paixão e o desejo poderiam se manifestar em diferentes níveis de intensidade. Na cama, ponderou, a linha que separa a violência da excitação pode ser mais tênue do que se imagina. Ocupou-se então com outras linhas de investigação.
Seria possível que aquele homem fosse um amante? Namorado, marido, companheiro. Talvez buscassem no brilho vermelho de um quarto de motel as centelhas necessárias para inflamar outra vez um relacionamento decadente. O simples fetichismo encontrado em lugares remotos poderia explicar aquela loucura incandescente. Fosse o que fosse, nada parecia mais estranho agora que a completa falta de memória que Célia experimentava. Pouco sabia sobre si mesma, e por algum motivo oculto todos os riscos e medos envolvidos nessa completa desordem mental a excitavam.
Corroída pelo pânico e pelo estranho prazer, a jovem decidiu se entregar. Se estivesse realmente em perigo, como imaginara a princípio, pouco poderia fazer para se livrar do monstro que lhe roubaria a vida: encontravam-se no centro de uma grande cama, e nenhum objeto que pudesse ser utilizado para defesa pessoal estava ao seu alcance. Poderia gritar, é claro, mas seria imediatamente silenciada se as intenções do rapaz fossem as piores. Nenhumas dessas conclusões tinham força suficiente para impedi-la de tentar salvar sua vida: a verdade é que ela se sentia perigosamente atraída pelo anonimato que banhava tudo ao seu redor.
A consciência desorientada de Célia então se emudeceu. Dividiu-se e fragmentou-se até que restasse apenas a parcela mais elementar da vida: emoções, experiências sensoriais desconexas colidindo-se umas com as outras para gerar uma profusão de impulsos primitivos. Restou apenas a apreciação voraz de tudo que ali acontecia, sem a busca por um fio condutor que conferisse lógica à situação. O medo dilui-se em mistério. O mistério a envolveu e a impeliu a continuar. Seu corpo queria conhecer, tocar, sentir. Correspondeu finalmente ao toque do estranho sedutor, e então tudo se transformou na concretização de um desejo puro e simples.
Acima, um espelho cobria quase toda a dimensão do quarto, e nele o brilho infernal da lâmpada se refletia para intensificar ainda mais a confusão escarlate do momento. Foi então que Célia viu pinos e seringas repousando silenciosamente no criado mudo. Na mesa do canto algumas garrafas de bebida jaziam vazias, reviradas até a última gota. Ambos pareciam desfrutar do almejado orgasmo quando o turbilhão de memórias perdidas finalmente voltou à sua mente. Lembrou-se da vida que levava, do vazio que sempre a conduzia até os bares remotos que costumava frequentar. Lembrou-se das dezenas de rostos que viu por não mais de uma noite, a maioria deles sem nome. Lembrou-se de todo o horror e desejou perder-se novamente no desconhecimento injetável.
Vestiu-se, apanhou seu maço de cigarros e saiu para a noite fria.

Canções Inspiradoras: Fire Fade, Tove Lo (Album Lady Wood) / Stranger, Tove Lo (Album Blue Lips)

terça-feira, 1 de maio de 2018

NO TOPO DO MUNDO

É indiscutível que a juventude, no sentido em que é debatida, está associada a pouca idade. Trata-se do período em que os prazeres e horrores da vida ainda estão sendo descobertos pela primeira vez. A repetição e a experiência encerram essa fase, mas talvez tudo seja uma questão de postura. Como você se comporta diante de situações parecidas com as quais você já vivenciou antes? A voz da razão assume a frente, produzindo as velhas respostas mecanizadas, ou é a voz do coração quem toma a dianteira, afirmando-lhe que nessa vida nada nunca se repete?
NO TOPO DO MUNDO

A noite já havia tecido seu véu quando subiram a ladeira. Traziam consigo suas roupagens pesadas de inverno, mas o calor que lhes acometia provinha dos litros de vinho que ingeriam enquanto caminhavam. Transeuntes há muito corrompidos pelo conservadorismo da vida adulta encaravam abismados, como se eles próprios não houvessem praticado suas pequenas revoluções em tempos longínquos. Continuaram subindo, inspirados por conversas que mesclavam heroísmo, drama e diversão. Os cigarros ardiam com paixão, lançando punhados de fumaça etérea na direção de um futuro que nenhum deles queria ver, porque sabiam que só podiam existir no presente.
Saíram das ruas e adentraram um terreno baldio, abrindo caminho por entre folhagens imperturbadas. Logo estavam subindo outra vez, marchando em fila indiana sobre uma fina trilha de areia. Enquanto a juventude lhes concedia coragem para encarar o percurso, o álcool selava o pacto de aventura, dizendo-lhes que não havia nada que não pudessem fazer. Naquela noite, não seguiriam as regras, pois estavam libertos e podiam contar com o inestimável poder da amizade. Confiavam uns nos outros, e apesar de todos os atritos que por vezes se instauravam, eles se amavam. Subiram, esquivando-se de encostas pedregosas e ratos assustados.
No alto, infinitas constelações salpicavam um céu limpo de outono. Quando a areia sedia, as pernas falhavam e os escorregões eram inevitáveis. Riam com vontade antes de se colocarem novamente em movimento, orgulhosos demais para reclamar de arranhões deixados sobre a pele febril. Longe das ruas, contavam apenas com o clarão errático das lanternas de seus celulares. A sensação vertiginosa de tatear no escuro era recorrente, mas estavam juntos, e enquanto essa condição se mantivesse inalterada nada os assustaria. Subiram mais, até finalmente alcançarem o cume de uma rocha, onde se sentaram ofegantes e puderam descansar ao som de suas próprias gargalhadas.
Num inexplicável momento de sobriedade, olharam ao redor e deram-se conta da extraordinária beleza proporcionada pelas luzes da cidade. Vista do alto, onde não existiam obstruções e as correntes de ar corriam selvagens, sentiram-se como forasteiros externos a toda aquela insanidade. Estavam acima de tudo agora. Não precisavam correr para chegar ao trabalho. Não precisavam ir à escola ou voltar para casa. Haviam se desvencilhado de todas as farsas sociais e podiam simplesmente experimentar a essência mais visceral da existência. Viram-se pequenos, e mesmo os seus problemas tornaram-se pequenos diante de toda a majestade daquele momento.
Ali permaneceram durante longas horas, emoldurados pela paisagem urbana e noturna daquele cenário. Debateram juntos sobre as palavras que podiam ser ditas em voz alta, e especularam em silêncio sobre aquelas que eram sufocadas até perderem o sentido, incapazes de atingir ouvidos alheios. Em uma só noite floresceram amores e padeceram paixões. Triunfaram esperanças e ruíram expectativas. E nesse mosaico profuso de sentimentos, fortaleceram-se laços. Apesar de suas individualidades extraordinárias e confusas, estavam ali pelo prazer que somente a reunião de seres tão complexos pode proporcionar. Dançavam com harmonia a valsa das diferenças para formar um só espetáculo.
Naquela noite, estavam no topo do mundo. A vida se desenrolava triunfante diante de seus olhos, ramificando-se em infinitas possibilidades ocultas. O recém adquirido poder de escolha, benção e maldição que aflige corações menos experientes, ainda precisaria ser explorado à exaustão para que os arrependimentos perdessem relevância. Enquanto isso, bastava o brilho das estrelas, ofuscado momentaneamente pelas pequenas nuvens que o cigarro produzia. Bastavam os sorrisos e os beijos e os abraços e as lágrimas. Bastava o conforto proporcionado pela simples percepção de que embora trilhassem caminhos solitários, jamais estariam sozinhos.
Naquela noite, estavam no topo do mundo.

Canção Inspiradora: Heroes, David Bowie (Álbum Heroes)

sábado, 28 de abril de 2018

MESA REDONDA

Esperar que todos lutem com a mesma ferocidade é, no mínimo, inadequado. Para alguns, a fronteira do esgotamento está a poucos quilômetros além da linha de partida. Há, ainda, quem enxergue propósitos mais verdadeiros na calmaria.
Nós só estamos de passagem.
MESA REDONDA

Estavam todos sentados à mesa, entreolhando-se atentamente enquanto as cartas eram reveladas. A tensão envolveu a sala, densa e fria como a névoa que encobre dias invernais. Mergulhados naquela atmosfera opressora, seus corpos se retraíam, tremiam e hesitavam, mas ninguém ousou interromper o jogo. Continuaram pegando cartas do baralho e prosseguiram com a contagem de pontos, para aflição daqueles que perdiam. Conversas casuais tentavam se sobrepor aquela horrível disputa, porém mesmo as palavras mais inofensivas convertiam-se em munição ao fluírem por entre lábios venenosos. Assuntos diversos mascaravam o medo da derrota, ludibriavam mentes ingênuas através de alianças promissoras e preparavam o terreno para golpes violentos.
Jogavam porque o jogo havia se iniciado. Jogavam porque todos jogavam, e não saberiam o que fazer se não fosse assim. As apostas não tinham qualquer consistência mais significativa, mas o título que o vencedor conquistaria servia ao propósito de todos eles. Vestiam novas expressões na medida em que suas táticas se tornavam previsíveis. Palestravam animadamente, fingindo diversão, ainda que seus olhares estivessem carregados de intenções ocultas. As horas avançaram, ininterruptas. A luz percorreu toda a extensão da sala e agora se alongava, projetando sombras disformes sobre paredes imaculadas.
Cada movimento precisava parecer despretensioso. Cada palavra, espontânea. Seguiram adiante, carregando no íntimo o peso de incontáveis expectativas alheias. Não se permitiam agir rapidamente, por medo de transparecer impulsividade ou descuido. Procuravam não se demorar demais entre uma cartada e outra, porque não queriam agir como pessoas indecisas ou confusas. Fizeram o melhor que puderam para construir imagens sólidas, retratos inabaláveis de si mesmos. Os personagens menos confiantes eram alvos fáceis – não suportavam a ideia de estarem sendo observados (vigiados) e logo viam-se eliminados. Transformavam-se na escória da mesa.
Um dos jogadores experimentava um intenso conflito interno. Não era um dos fortes, tampouco detinha as melhores estratégias, mas de alguma forma se mantinha presente. Foi atacado (ferido) diversas vezes, mas procurou não revidar. O medo extremo e a covardia dançavam em seus olhos, diluídos em um pouco de ternura e compaixão. Suportou seus receios (dores) sem transferi-los a ninguém porque sabia como eram amargos, e sabia que os demais precisavam lidar com seus próprios problemas, manter suas próprias imagens. Não atacou esperando algum tipo de retribuição, mas seus companheiros eram jogadores natos, e bons jogadores não hesitam.
Deslocado, seguiu solitário. Tirou do baralho cartas poderosas, mas não conseguia suportar a ideia de desferi-las contra seus oponentes. Fazia o suficiente para se conservar, ainda que isso significasse absorver jogadas perigosas. Desgastou-se ao procurar por estratégias de neutralização. Não queria perder, sabia disso, mas também não queria infligir desgosto. Quando finalmente percebeu a profusão de polaridades que se deitava sobre a mesa, descobriu que era um agente nulo na partida. Era uma testemunha cansada - insistia no jogo unicamente para afirmar sua existência, embora sua política de não-intervenção o fizesse desaparecer em cartadas rivais.
Descobriu então que não queria jogar. Estava exausto. Que ficassem com os títulos e com a realidade opressora daquela sala. Que possuíssem toda a mecanização de movimentos supostamente despretensiosos. Que se divertissem com suas conversas frígidas, tendenciosas. Que continuassem se machucando, se exaurindo em uma corrida desprovida de destinações finais. Levantou-se da mesa, encarando olhares de reprovação, pousou as cartas na madeira fria e saiu para o jardim, onde o sol banhava a grama verde e o ar era leve, limpo. Respirou profundamente e ouviu o balançar sereno das infinitas folhas que o circundavam. Sorriu ao se dar conta do imenso alívio que experimentava naquele momento.

Canção Inspiradora: Sky Full of Song, Florence + The Machine (Álbum High as Hope)

domingo, 25 de março de 2018

VERÃO DA ALMA

E quando lhe perguntaram sobre o que entendia dos afetos, faltaram-lhe palavras. A parte mais humana de nós não pode ser codificada por nenhuma forma de linguagem conhecida.
VERÃO DA ALMA

Desceram juntos a ladeira pedregosa de uma das cidades mais antigas do mundo. Aurélio abandonava sua introspecção em intervalos regulares de tempo, fazendo comentários pontuais ante a enxurrada de palavras que Ricardo despejava sobre seus ouvidos. Ambos caminhavam com tranquilidade em meio a um fluxo interminável de turistas. Olhavam atentamente para as janelas seculares, talvez imaginando quantas gerações de moradores se apoiaram sobre os peitoris para observar a vida passando. O verão daquele ano fervilhava com todo seu potencial, mas um tipo diferente de calor pulsava no coração daqueles rapazes: estavam inebriados pela paixão em sua forma mais pura e honesta.
Ricardo esperava encontrar edifícios velhos e museus antiquados. Foi surpreendido pela beleza pitoresca de casas, igrejas, monastérios e um punhado de outras construções igualmente fascinantes. Deteve-se diante de um monumento dedicado a grande guerra, contemplando-o por vários minutos. Precisou segurar a mão de seu companheiro com mais força quando tentou imaginar o cenário que levou à elaboração de uma obra tão expressiva e melancólica. Aurélio o conduziu então para pontos turísticos menos deprimentes, e logo a harmonia de uma tarde sem nuvens estava restaurada. Experimentaram os tradicionais sorvetes de sabores incomuns, e cruzaram juntos a ponte mais icônica do mundo.
Apesar de conhecer cada canto da cidade, parecia à Aurélio que novas perspectivas estavam se abrindo para ele. Já havia inspecionado aquelas fachadas esculturais centenas de vezes, e ainda assim encontrou fissuras inéditas, saliências inexploradas e curvaturas recém descobertas. Por esperar rever os mesmos planos edificados, foi tomado pela agradável surpresa que se escondia em novos enquadramentos e visadas. Seu discurso não era tão fluido quanto o de Ricardo, é verdade, mas ele adorava ouvir o que seu amado tinha a dizer. Ria com ternura quando o via surpreendido pelas maravilhas daquele lugar. Achou que era hora do gran finale, e por isso entraram na fila de visitação que conduzia ao interior da igreja principal.
A extensão da fila não os incomodou em absoluto. Desfrutavam com tanta intensidade da companhia um do outro que a espera se converteu em longos minutos de conversação contemplativa. Ricardo expressava seu contentamento por meio de sorrisos sinceros, dizendo o quanto estava adorando conhecer a história milenar daquela pequena província. Aurélio tentou encontrar palavras para descrever a satisfação pulsante que corria em suas veias, mas a inibição sempre o limitava. Ele não sabia, mas Ricardo era capaz de ler aquele sentimento em seus olhos. A conexão entre eles não poderia caber em uma sentença: transcenderam a verbalização para alcançar o tipo mais raro de amor.
Deixaram o mundo para trás e caminharam pelo interior da catedral. As paredes claras não condiziam com a profusão de ornamentos que se via nas fachadas, constatou Ricardo, mas a simplicidade era igualmente estonteante. Defrontaram-se com o altar principal, e ali permaneceram por alguns minutos, admirando os motivos religiosos de outrora. Aurélio pediu que seu amado voltasse os olhos para cima, e Ricardo assim o fez. Viu-se debaixo de uma grande abóbada, decorada com aquela que pensou ser a pintura mais linda que já vira em toda a sua vida. Ao ver o sorriso que se abriu em seu rosto, Aurélio entendeu tudo.
A cidade era exatamente a mesma que havia conhecido alguns anos antes. Tudo estava em seu devido lugar, assentado sobre as mesmas fundações ancestrais. Ele, por outro lado, era outra pessoa. Entendeu que os novos enquadramentos e nuances capitados por seus olhos eram fruto daquele amor incondicional que sentia por Ricardo. Entendeu que sua supressa talvez residisse na vontade indomável de compartilhar suas melhores experiências com aquele homem. Por uma fração de segundo tudo se aquietou em sua mente, e uma percepção fundamental ali se materializou: não lhe faltava mais nada.
Aurélio não acreditava em dias perfeitos. Os anos lhe mostraram que a existência se cristaliza na constante busca por um estado de equilíbrio que, depois de alcançado, perde-se no turbilhão de emoções que constituem o caráter mais elementar da humanidade. Não acreditava em dias perfeitos, mas acreditava naqueles momentos fugazes de harmonia. Não é difícil reconhecê-los, ponderou. Podem ser percebidos em fins de tarde amarelados, onde a vida é simplesmente celebrada ao som do canto de pássaros despreocupados. Estão estampados em noites cálidas de luar, perturbadas somente pela brisa fraca de estações tranquilas. Algumas vezes, esses momentos se perpetuam em outros olhos, despertos por alguma chama invisível que se interpõem entre corações apaixonados.
Deram as mãos e voltaram para a tarde ensolarada que banhava a cidade.

Canção inspiradora: Love, Lana Del Rey (Álbum Lust for Life).

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A CELA E A CHAVE

A mente humana é resiliente por natureza. Ainda que demore a se recuperar, e mesmo que nunca mais volte a ser a mesma, ela é sempre capaz de reconstituir seu estado original de pureza. É preciso reconhecer que o mundo externo a contaminará com outras influências, mas isso não justifica uma vida fundamentada na satisfação de terceiros em detrimento da realização pessoal.
A CELA E A CHAVE

Osvaldo atenderia sua última cliente e então estaria liberado de seu exaustivo turno de dez horas trabalhadas. O dinheiro extra era algo bom, mas o garçom acreditava que não compensava o cansaço físico e mental que se apoderava dele no fim do dia. Sorrindo da forma mais convincente que conseguiu, colocou a xícara de café na bandeja e a levou até a moça que havia se sentado sozinha do lado de fora. Era verão, e o estabelecimento se voltava exatamente para oeste. Nessa época do ano, quase ninguém costumava se sentar nas mesas externas enquanto era dia, mas aquela jovem contrariava todas as expectativas. Havia certa luminosidade em seu rosto, ponderou Osvaldo. Um brilho que ia além do sol poente refletido em seus óculos escuros.
A moça pôs de lado o livro que estava lendo, pegou a bebida fumegante e agradeceu. Osvaldo, que estava acostumado com a monotonia de agradecimentos vazios, sentiu-se revigorado pela sinceridade dela. Contemplou-a por um segundo ou dois antes de informar que, devido ao fim de seu expediente, outro funcionário prosseguiria com o atendimento. Ela sorriu em resposta, agradecendo mais uma vez pela cordialidade do garçom, que se retirou logo em seguida. A jovem apanhou da mesa a xícara de café e bebeu um pouco, saboreando o gosto forte que tanto apreciava. Seu nome era Débora, tinha 27 anos e adorava contemplar o horizonte enquanto refletia sobre os dias de luta que lhe consentiram a inexplicável sensação de liberdade que sentia agora.
O coração de Débora serviu, durante muito tempo, à um homem de índole duvidável. Embora seu caráter não pudesse ser descrito como totalmente ruim, suas ações não transpareciam outra coisa senão um totalitarismo psicológico que aprisionou a mente da jovem da maneira mais cruel: sem permitir que percebesse as amarras de um relacionamento obsessivo, ele a envolveu em um círculo vicioso que minou toda a sua autoconfiança, tornando-a dependente de um amor doentio. Mesmo agora, enquanto o café descia por sua garganta e o sol aquecia suas faces, Débora era capaz de sentir as cicatrizes vibrando em seu interior. Elas não incomodam mais e talvez pudessem ser apagadas, mas Débora as admirava. As amava verdadeiramente.
Tudo começou quando Débora conheceu Lúcio, um homem dez anos mais velho que ela. A diferença de idade pareceu insignificante diante da cortesia e da atenção que o rapaz lhe direcionava sempre que estavam juntos. Ele era encantador, e cada palavra que saía de seus lábios soava como música aos ouvidos de Débora. A maravilha da conquista logo se transformou em paixão de intensidade arrebatadora, e esta não demorou muito a se converter na mais sublime forma de amor e entrega. O problema é que Lúcio não pretendia se entregar de maneira recíproca. Os anos de experiência que se interpunham entre ele e Débora certamente o colocaram em vantagem: ele sabia que a expectativa quase sempre vem acompanhada de doses amargas de decepção, e por isso assumiu controle.
Desavisada, Débora mergulhou de cabeça. Pensava em Lúcio repetidas vezes ao longo do dia, e este passou a ocupar um espaço cada vez mais significativo em sua vida. O desejo e a vontade se tornaram necessidade, e todos sabem que esta última é a porta de entrada para a dependência. Lúcio era a substância química preferida de Débora: ele era profundo, e por isso proporcionava os melhores devaneios. E ele tinha consciência disso. Percebia o magnetismo que emanava de si próprio, atraindo a moça com cada vez mais intensidade para perto de si. Porque ele permitiu isso, se não tinha a intenção de doar-se em igual proporção, é um mistério. Talvez estivesse assustado demais para encarar os riscos. Por medo de ruir outra vez, deixou que Débora se afogasse sozinha em suas próprias ilusões, sem retribuir nada além do necessário para mantê-la por perto.
Para aqueles que se entregam sem nada receber em troca, a pior constatação é a de que cada um de nós é responsável pelo que sentimos e fazemos. Nós tecemos nossas próprias fantasias, e nelas encontramos refúgio. Quando tudo se desfaz diante de nossos olhos, não restam outros culpados além de nós mesmos. Débora sempre soube que estava amando mais do que era amada. Era capaz de enxergar impulsos de calor e desejo nos olhos de Lúcio, mas também via a frieza com a qual ele lidava com toda a situação.
Ainda assim, a jovem escolheu fechar os olhos para todas essas constatações. Sua mente, aninhada pelo conforto de um ombro amigo, grata pelo testemunho de alguém que (talvez) a via e ouvia com o coração, preferiu mentir para si mesma. E se tudo acabasse? E se Lúcio partisse, agora que sua vida inteira havia sido moldada entorno dele? Para onde iriam os sonhos, os planos para o futuro, se aquele homem não figurasse mais no horizonte do tempo? Ela seria capaz de encontrar outro amor se este chegasse ao fim? E se aquela fosse uma combinação universal única, destinada a jamais se repetir outra vez? Era melhor deixar as coisas como estavam, concluiu. Não haviam motivos para arriscar tudo aquilo que haviam construído juntos.
Um dia, ao sair do banho e se enxergar refletida no espelho, Débora percebeu que também era um ser humano. Se enxergou de fato pela primeira vez em anos – talvez pela primeira vez na vida. Estava com medo, pois sabia que as palavras que queria dizer a Lúcio resultariam no fim de toda aquela experiência, mas por respeito a si mesma e a seus sentimentos, que continuavam tecendo ilusões na parte mais profunda de seu coração, ela tomou uma decisão. Precisava de garantias, e se não pudesse tê-las, aprenderia a lidar com a ausência daquele que havia se tornado uma extensão de si. Enxugou as lágrimas enquanto repetia à exaustão o mesmo discurso que usaria naquela noite.
Aquele encontro foi diferente de todos os outros. Lúcio era capaz de sentir a pressão das palavras que apodreciam lentamente dentro de Débora. Ele sabia que a moça não permaneceria mais indiferente a todos aqueles jogos de manipulação e controle. Quando ela pronunciou cada uma delas, ficou surpreso: nem mesmo em seu momento de maior dor ela era capaz de feri-lo. Quando Débora soube das intensões evasivas de Lúcio, desejou não ter chegado tão longe. Se arrependeu instantaneamente das palavras que dissera, pois acreditava que era melhor tê-lo parcialmente que não o ter por completo. Nenhum dos dois quis prolongar aqueles minutos de amargura, então logo se despediram.
Os primeiros dias foram insustentáveis. O vazio que Lúcio deixara no coração de Débora parecia grande demais para ser preenchido por qualquer outra coisa. Os olhos da jovem não permaneciam secos por muito tempo; a televisão não a distraía o bastante; e as horas que precediam o sono eram dolorosas demais para que qualquer sonho bom resultasse disso. O desespero da perda infligia culpa, lamentação e ódio, e toda essa carga negativa era direcionada para ela própria. Débora precisou conviver com aquele constante nó na garganta durante muito tempo. Pior que isso: precisou sobreviver a sensação de que nada mais importava, de que seguir em frente já não fazia sentido algum.
Demorou, mas o âmago da dor eventualmente se diluiu na inevitabilidade da situação. Aos poucos, a jovem aprendeu a aceitar que nada é eterno, e que a vida prossegue mesmo após a morte dos sonhos mais vívidos. Os dias ainda carregavam aquele matiz acinzentado, e o rosto do homem que amava frequentemente lhe ressurgia em pensamento, mas o aperto no coração diminuíra consideravelmente. Durante um breve período de tempo, ela se lançou em investidas frustradas, esperando suprir a carência daquele vazio obscuro, mas encontrou apenas a degradação de sua consciência debilitada. Resolveu esperar sem saber exatamente pelo que estava esperando.
Enquanto o processo de cura pessoal fazia seus pequenos milagres, Débora se redescobriu. Saiu daquele relacionamento completamente exposta e desprotegida, e graças a isso pôde se remodelar da própria maneira, livre de interferências. Tijolo por tijolo, encontrou apreciação em sua própria companhia. Percebeu que era capaz de se proporcionar boas experiências e as potencializou ao máximo. Se lançou no inusitado, e na solidão encontrou a única heroína de que precisava, e de quem dependia verdadeiramente. Passou a cultuar seu eu interior, e logo estava pronta para se lançar novamente nos mistérios da vida. Sabia, porém, que não estaria desamparada em momento algum.
Do momento em que foi deixada sozinha com suas ilusões ao momento presente, onde desfrutava de si mesma enquanto o sol tombava no horizonte, muita coisa se desenrolou na vida de Débora. Ela aprendeu o real significado da superação e se prometeu uma vida intocada pelo jogo de outras pessoas. Era dona de si mesma agora, e isso bastava, pois aqueles que assumem as rédeas de sua própria vida entendem que a liberdade não é uma utopia trajada com asas brancas, mas sim um estado de espírito inacessível à terceiros. Embora exista no compartilhamento, a liberdade só pode ser experimentada no âmago da individualidade.
Débora se levantou assim que o garçom lhe devolveu o troco. Agradeceu pelo serviço e desceu a rua, banhada pelo espetáculo luminoso do poente. Andaria sem rumo até sentir vontade de ir para casa. Naquele momento, porém, perpetuaria a fruição indomável de seus próprios desejos. Carregava consigo as chaves de sua própria cela, e não as entregaria para mais ninguém.


Canção Inspiradora: Get Free, Lana Del Rey (Álbum Lust For Life).

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

ENSAIO SOBRE A CELEBRAÇÃO: EPÍLOGO

A fantasia é a mais poderosa arma de autodestruição. Impulsionada pela negação da verdade, nos faz acreditar em realidades ilusórias onde toda a dor e angústia podem ser desconsideradas. Mas a vida é o que é, e o mundo é o que é. Todos os aspectos materiais e imateriais que conformam a natureza da existência possuem um propósito, e negar qualquer um deles significa abrir mão do equilíbrio tão necessário à experimentação terrena, espiritual e emocional.
ENSAIO SOBRE A CELEBRAÇÃO: EPÍLOGO

No tocante à negação, Gregório era um especialista. Quando praticamente todas as substâncias foram varridas de seu organismo, ele forçou um estado de empolgação não muito convincente. Quando as horas de dança e agitação começaram a ser cobradas sob a forma de desconfortos e dores físicas, ele escolheu ignorá-las. Quando a campina começou a ficar vazia, ele continuou dançando – eram movimentos arrastados, mas desde que a festa não chegasse ao fim, estava tudo bem. Mas o pior de tudo era a sensação de deslocamento que galopava por entre os rostos cansados dos últimos boêmios remanescentes. Cada encontro de olhares denunciava a sobriedade iminente, e a desorientação que se seguia expunha a aparente degradação moral conferida pela perda temporária da sanidade.
Por querer estender ao máximo o alcance daquela aura celebrativa, Gregório não era capaz de reconhecer o fim de um evento festivo. Permanecia ali, trôpego, no meio da pista de dança, lutando para ressuscitar o apogeu da noite. Nem mesmo a percepção da equipe de limpeza, que cruzava a pista de um lado a outro recolhendo cacos de vidro, copos descartáveis e garrafas de água mineral, foi capaz de convencê-lo de que já era hora de partir. As últimas músicas eram capazes de proporcionar algum conforto, mas o contingente reduzido não propagava mais a energia dissipada nas primeiras horas da noite.
Aqueles eram os momentos mais dolorosos. A visão de Gregório ora focava em pontos vazios, refletindo sobre tudo e sobre nada, ora se voltava para o cenário onde toda a festa se desenrolara. Um aperto nostálgico envolveu seu coração: viu o palco principal vazio e se lembrou da perfeita condução musical proporcionada pelo DJ; olhou para a pista, onde poucos zumbis agora se arrastavam, e se viu novamente imerso pela trupe de dançarinos amadores que povoara os salões. Quase pôde sentir a energia eufórica que percorreu suas veias, mas aqueles eram apenas resquícios de memórias.
Angustiado, o rapaz ponderou sobre a efemeridade intensa daquela festa, que agora morria sob o embalo melancólico dos últimos minutos. A noite inteira parecia ter sido resumida a poucas horas. Lembrou-se de conversas e sensações que o tinham levado ao estado mais puro de contemplação e deleite, e sentiu uma pontada de dor ao perceber que aquelas experiências começavam a se tornar mais turvas. Em breve, muitas delas desapareciam por completo, restando apenas alguns traços, pistas lançadas sobre a profusão de emoções que era a sua mente. E claro, essas mesmas pistas o conduziriam novamente à próxima festa, mas agora isso não importava. A perda dessa última era grande demais para ser acalmada por possibilidades futuras.
Então, o primeiro feixe de luz diurna despontou nas alturas. As estrelas logo seriam ofuscadas pela exuberância de um céu azul de verão, e todos os segredos da noite estariam finalmente enterrados. Gregório sabia quem era quando estava celebrando. Reconhecia a si mesmo na dança, nos delírios e no círculo de pessoas que, assim como ele, faziam das noites de festa um refúgio. Imerso em gelo seco, substâncias químicas e luzes vertiginosas, tinha pleno controle de sua vida. Mas quem era ele quando o sol ascendia? Quem era ele quando a luz não oscilava e seu rosto era exposto? Do lado de fora, onde a realidade não pode ser mascarada, sua vida era apenas um hiato entre uma festa e outra.
As luzes pararam de piscar e assim que as caixas de som foram desligadas um silêncio sepulcral tomou conta da campina. Os que persistiram até aquele momento estacaram de repente, e mais uma troca de olhares confusos se sucedeu. Gregório foi arrancado de seus delírios, mas ainda não estava pronto para partir. Caminhou até o balcão do bar e pediu uma garrafa de água. Entregou para a balconista a quantia errada e o embaraço se prolongou por mais alguns segundos. Ao fundo, outros funcionários lavavam as taças e copos de vidro que sobreviveram às garras de bêbados e viciados agitados.
Antes de sair, Gregório olhou para trás por uma última vez. Pensou em como a atmosfera do espaço físico se transformara tão repentinamente, indo de um festival de energia a um contenitor vazio e silencioso. Refletiu, finalmente, sobre as infinitas memórias que deveriam estar arquivadas ali dentro, e em quão inalcançáveis todas elas estavam agora. “O espaço funciona como uma plataforma”, ele ponderou, “mas são os acontecimentos, as pessoas e suas interações que o tornam relevante”. Seja como for, tudo parecia sem importância agora – todas as risadas e as lágrimas que ali se derramaram não tinham profundidade se observadas no momento presente.
Uma vez do lado de fora, Gregório teve sua visão ofuscada pelo brilho do sol, e viu-se entregue aos perigos e infortúnios da vida real. Voltou para a cidade sentindo um vazio incomensurável dentro de si. Ele continuaria preenchendo aquele abismo com emoções manipuladas, embora soubesse que elas nunca seriam suficientes para cobri-lo. Tudo bem, aquele era apenas outro hiato até a próxima celebração.


Canção Inspiradora: Sober II (Melodrama), Lorde (Álbum Melodrama).


NOTA DO AUTOR: Preferi me perder e encontrar na solidão meu próprio caminho. A trilha que os outros oferecem como meio mais seguro para se chegar a algum lugar é essencialmente impessoal e pouco desafiadora. Não se permita tomar o curso mais fácil, pois este é também o menos interessante.